Insanity Records | "Cheiro de Enchente", novo single da Diokane, verte a agonia da maior tragédia climática do RS

Em meio ao caos que se alastrou com a enchente que atingiu o Rio Grande do Sul em maio de 2024, um forte odor vindo do lodo e dos detritos, carregados de sedimentos variados – como animais mortos e esgoto –, deixou a maior tragédia climática do Estado ainda mais perturbadora. É esse o mote de “Cheiro de Enchente”, novo single da banda porto-alegrense Diokane. A composição é um relato do que se viu e sentiu durante a enxurrada de horror, com base, principalmente, no que foi testemunhado ou mostrado na imprensa em Porto Alegre e arredores. Um documentário/clipe com imagens da catástrofe e depoimentos de quem sofreu diretamente as consequências da inundação acompanha o lançamento. Até mesmo as cenas em que a banda aparece tocando tiveram como cenário um dos inúmeros locais alagados na capital gaúcha.

Assista aqui:

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No vídeo, os personagens que narram como foram impactados pelo dilúvio são familiares e amigos da banda – mostrando que vítimas da catástrofe estão por todas as bolhas. A amostragem, ainda que pequena, ilustra números assustadores sobre a magnitude do evento climático que não poupou gente nem bicho. Foram 478 dos 497 municípios gaúchos atingidos, conforme a Defesa Civil do RS. Houve impactos para cerca de 2,4 milhões de pessoas (entre as que precisaram deixar suas casas e as que tiveram interrupção de serviços), com mais de 180 mortos e 25 desaparecidos. Além disso, o governo do Estado estima cerca de 20 mil animais resgatados. As áreas mais afetadas incluem Vale do Taquari, Porto Alegre e Região Metropolitana. Na capital e cidades vizinhas, boa parte dos atingidos era gente pobre e/ou negra, conforme o Observatório das Metrópoles.

Sobre a música, mas não só.

Descrever a percepção olfativa do que se sentiu durante e após a enchente é uma tarefa complexa. Para a presidente da Fundação Gaia, a bióloga Lara Lutzenberger (filha do ambientalista José Lutzenberger), houve um agravamento substancial do odor relacionado à catástrofe. A razão é a mistura tóxica e pestilenta com todo o tipo de lixo e materiais perigosos que as águas encontraram no caminho.

“Na enchente dos anos 1940, não havia nada disso, e os danos se “limitaram” ao alagamento, sem ampla contaminação associada. Os componentes orgânicos que se misturaram no coquetel do ano passado, que também foram mais abundantes que em outras épocas – incluindo esgoto por falta de redes de saneamento adequadas – proliferaram algas e bactérias em grande quantidade. Isso se revelou no mau cheiro”, elucida Lara.

A fetidez cessou conforme as estruturas que resistiram às chuvas foram secando e sendo limpas, mas as marcas do pé-d’água descomunal permanecem. Não apenas nas paredes ainda encardidas com as indicações da altura em que a inundação chegou, como também na memória de quem sofreu com a força da natureza. Essas recordações estão registradas em “Cheiro de Enchente”.

A composição foi gravada no Black Stork estúdio, com produção de Thiago Caurio (baterista da Atomic Elephant). Já a mixagem e a masterização ficaram sob responsabilidade de Renato Osório, guitarrista da Atomic Elephant e produtor que já trabalhou com Híbria, Distraught, Leviaethan entre outros. O vocalista da banda Pull The Trigger, Tiago “Taz” Freitas Severo, 44 anos, faz participação na faixa. Ele é morador da Vila Farrapos, zona norte de Porto Alegre, e perdeu praticamente tudo que tinha na residência em que morava com os pais e a filha, precisando sair resgatado por um barco. Taz canta junto o refrão: “O cheiro da enchente / mal-estar evidente / da náusea à dor / desamparo latente”.

“Teve o cheiro do momento em que a gente saiu, que era um odor de gasolina, pois tinha barcos circulando para resgatar a população. E teve o pós, quando a água desceu e voltamos para ver como ficou a casa, que era pior. Era algo forte, de muita coisa misturada, nem sei como descrever. Mas se isso vem à lembrança, traz o gatilho de que possa acontecer novamente”, afirma Taz, que teve a habitação coberta por 2m20cm de água.

A operadora de OPLS Vanessa Giovagnoli dos Santos, 47 anos, moradora do Mathias Velho – periferia de Canoas e um dos pontos que mais sofreram com a tragédia em todo o RS –, relaciona o bodum ao luto:

“Era cheiro de morte. Não é só uma percepção do olfato, porque é algo que remete ao vazio das perdas”.

Testemunhos da destruição

Para ilustrar o tamanho da catástrofe que veio do céu, “Cheiro de Enchente” chega acompanhada de um documentário junto ao clipe. A produção audiovisual é dirigida pelo baixista Billy Valdez, com fotografia, operação de câmera e assistência de direção de Leandro Monks. A obra apresenta depoimentos de vítimas da enxurrada, bem como cenas do cataclismo misturadas com takes da banda tocando.

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As imagens do grupo ao vivo foram captadas no Áudio Porco, estúdio no bairro Cidade Baixa, região central de Porto Alegre. No local, o refluxo do esgoto e a água que o sistema de bombeamento não deu conta de escoar, fizeram com que o líquido empesteado chegasse a aproximadamente 1m20cm dentro do estabelecimento – que fica abaixo do nível da rua. O estrago obrigou o empreendimento a interromper os serviços por cerca de 60 dias e demandou investimento não previsto para reformar o mobiliário atingido.

“Tínhamos uma reserva, ainda bem. Se não, o jeito seria fechar”, avalia Moisés Augusto Rodrigues, 38 anos, proprietário do local, que admite temer algo parecido em um futuro não muito distante.

Perdas materiais também acometeram a secretária administrativa e coproprietária do InkPact Tattoo Gallery Carina Nascimento Giehl, 35 anos, e o tatuador Fernando Antônio “Tampa” Giehl, 40. O casal teve a casa em que morava, no bairro Fátima em Canoas, invadida por cerca de dois metros de água. O espaço profissional, no bairro São Geraldo (zona norte de POA) não foi poupado – ainda que com nível de alagamento menos elevado do que na residência.

“Ficamos um mês fechado com água dentro e mais um mês de limpeza. Foram cerca de cinco ou seis lavagens para sair o cheiro, que só parou mesmo depois de lixarmos o piso umas três vezes”, recorda o artista, que saiu de Curitiba com a família quando era criança justamente em razão de uma enchente que invadiu o lar onde moravam.

Apesar do prejuízo com móveis, decoração, eletrodoméstico e outros itens, Carina conta que a dor maior foi presenciar objetos simples, de valor afetivo e ligados a infância dos filhos, sendo consumidos pela intempérie.

“Em uma das idas para limpar a casa, em Canoas, achei roupas dos meus filhos (um com 10 anos e outro prestes a fazer 18) na rua. Aquilo não sai da minha cabeça. Esse tipo de lembrança não tem mais. É uma recordação da vida que a gente perdeu”, desafoga, às lágrimas.

Izza Balbinot, 32 anos, ex-vocalista da banda Välika que trabalha em diferentes frentes no setor de eventos, reforça que o episódio foi traumático. Ela destaca que o pouco que tinha no domicílio, no Mathias Velho, foi perdido na molhaceira.

“A gente já é desestruturada emocionalmente por outras questões e ainda tem de passar por isso. Foi desastroso, destruiu bem mais do que só pertences”, desabafa.

Vanessa Giovagnoli também não esquece a tristeza que sentiu ao saber que investimentos feitos com sacrifício foram destruídos.

“A enchente nos impactou de todas as formas, seja psicologicamente ou financeiramente. Ainda é uma luta”, pontua a irmã do guitarrista da Diokane, Rafael Giovanoli.

A casa em que ela ainda vive com a mãe – a pensionista Silvana Giovagnoli, 66 anos – e o filho Lucas Giovagnoli, 12, ficou submersa por cerca de seis metros, com praticamente tudo o que havia dentro inutilizado pelo encharcamento. Agora, a família busca deixar o imóvel em que residiu por boa parte da vida, com medo de passar pelo pesadelo outra vez.

“A gente continua traumatizada. É algo que não vai passar logo. Eu não consigo nem dormir quando tem barulho de chuva. Se for possível iremos para outro lugar, queremos sair daqui”, frisa Silvana.

A fluidez com que a água se alastrou durante o evento climático do ano passado contrasta com a aparente falta de urgência do poder público para lidar com um possível novo desastre. Poucas ações concretas para prevenir ou mitigar outras enchentes foram implementadas, reforçando o temor de quem viu a própria história naufragando. Basta alguma precipitação mais forte para o pavor tomar conta. Foi o que aconteceu em junho de 2025: uma tempestade trouxe à tona o lembrete de perigo iminente, com chuvas três vezes maiores que a média, mensurou o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Novas mortes (ao menos cinco) e estragos em diferentes áreas do RS foram confirmados, de acordo com a Defesa Civil. E isso não cheira bem como previsão de futuro.

Barulho para verter insatisfação

O jornalista Fábio Schaffner, de GZH, que atuou na cobertura das inundações em pontos diferentes do Rio Grande do Sul, percebe o lançamento da Diokane da seguinte forma:

“Cheiro de Enchente”, o mais novo single da Diokane, tem a urgência e a revolta de quem testemunhou um cataclismo climático e sobreviveu para cantar a desgraça. Sete anos após o lançamento do EP de estreia, “This Is Hell We Shall Believe”, a banda de hardcore/metal gaúcha faz do aluvião que atingiu o Estado em 2024 tema de sua canção de retorno. Mas esse, definitivamente, não é o inferno em que a Diokane acredita. Pelo contrário. Ao narrar o sofrimento de quem perdeu tudo o que tinha e o descaso de quem não fez nada para evitar a tragédia, Homero Pivotto Jr. exorciza ao microfone a mistura pútrida de chuva, esgoto e carniça que invadiu casas e ruas, enquanto Billy Valdez (baixo), Rafael Giovanoli (guitarra) e Gabriel Kverna Motta (bateria) nos conduzem pelo ouvido ao purgatório da lama e do caos de uma cidade submersa. O começo, hipnótico, é como o redemoinho que traga o náufrago. Os riffs crescem, mas sem ceder à velocidade. A melodia é lenta e pesada, com a força de uma correnteza que se move devagar e arrasta tudo que há pela frente. Com 3min20s, “Cheiro da Enchente” é pungente e necessária. Muitos cantaram a enchente sob a ótica poliana do recomeço, o sol sorrindo na manhã seguinte. Faltava alguém para dar punch ao desamparo, para nos lembrar que escurece de novo no fim da tarde.

Ficha técnica:

Billy Valdez – baixo
Gabriel “Kverna” Motta – bateria
Homero Pivotto Jr. – voz
Rafael Giovanoli – guitarra

‘Cheiro de Enchente’ foi gravada no Black Stork Studio
Produção: Thiago Caurio
Mixagem e Masterização: Renato Osório
Participação especial na voz: Tiago Taz Freitas Severo (Pull The Trigger)
Arte da capa: Rafael Giovanoli
Fotos da banda: Leandro Monks
Reportagem/Release: Homero Pivotto Jr.
Direção e edição do documentário/clipe: Billy Valdez

Letra:

Quem tem medo do inferno,
Reluta em crer
Que a treva veio do céu

O cheiro da enchente
aflição que se sente
enxurrada de horror
Tristeza inclemente

Sufocando sonhos
jogados ao lixo
choveu sofrimento
pra gente e pra bicho

A marca do lodo
impregna a parede
e lembra o descaso
que nenhum dique conteve

Todos no mesmo barco
naufragando em agonia
afogando em lembranças
do que já foi um dia

O cheiro da enchente
mal-estar evidente
da náusea à dor
desamparo latente

O esgoto vertendo
repulsa e nojo
se vê rato e entulho
cenário bico do corvo

no fundo do poço
resgatando esperança
pra afugentar o mau tempo
algoz de adulto e criança

O cheiro da enchente
mal-estar evidente
da náusea à dor
desamparo latente

Foto:
Leandro Monks

Fonte:
H0mero Pivotto Jr

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